quinta-feira, abril 11, 2013

A ferrugem da Dama de Ferro

Na minha última postagem, sobre o papa Francisco, cheguei a abordar como o poder político de um cargo pode reescrever a biografia de uma pessoa. Para tanto, faz-se necessário que tal pessoa disponha de um aparato midiático disposto a reescrever sua biografia, refutando ou eliminando qualquer ruído sobre fatos que diminuam o caráter do biografado. O papa Francisco tem logrado sucesso nessa empreitada. A revista Veja, em sua edição de 27 de março desse ano, anunciou já na capa que a influência do novo pontífice na política da América Latina "será uma benção". Estaria a revista se referindo ao "papa dos pobres", ou ao delator de confrades?

Descobrimos agora que a morte também é capaz de reescrever uma biografia manchada. O aparato midiático mundial se presta, durante toda a semana, a homenagear a Dama de Ferro, a ex-Primeira Ministra britânica Margareth Thatcher. Com seu passamento, a linha dura e a intransigência características dos seus anos de governo foram suavizadas, relativizadas e louvadas como exemplo de liderança firme e ousada. Sua forte oposição a socialismo colocam-na ao lado de Ronald Reagan e João Paulo II, como colaboradora no desmantelamento do bloco soviético, mas esquecem-se de seu apoio incondicional ao ditador chileno Augusto Pinochet, inclusive durante o exílio deste em Londres. Também esquecem-se (ou querem que se esqueça) seu apoio velado ao sistema de Apartheid na África do Sul, acusando Nelson Madela de "terrorista". Aliás, é bem sabido o tratamento preferencial que a Sra. Thatcher dispensou aos "terroristas" do Exército Republicano Irlandês (IRA).  

O auge do governo Thatcher foi entre 1979 e 1981, quando a Grã-Bretanha entrou numa forte recessão econômica. O que a mídia mundial tenta mostrar é que a recessão britânica foi causada pelo dívida pública crescente, que o então governo trabalhista de James Callaghan gastava demais para manter o estado de bem-estar social, e que a inflação estava descontrolada devido ao custo de vida elevado. É nesse cenário que surge Margareth Thatcher. O Partido Conservador, derrotado nas últimas três eleições até aquele momento, transmitia a mensagem de que a chave do sucesso para a economia britânica era a austeridade, o dispêndio consciente do orçamento público e o corte inevitável dos excessos. E onde os tradicionais políticos ingleses falharam, uma mulher teria êxito. Pensavam que se a dona-de-casa não fizesse bem, também não faria um mal pior do que o que se desenhava. Triste constatar que uma mulher pode ser eleita líder de um país não por suas credenciais ideológicas, mas pelo seu sucesso nos afazeres domésticos. Cúmulo do machismo velado, que ainda ronda alguns discursos por aqui.
 
Mas é preciso analisar tudo pelo espectro mais amplo. A recessão econômica do período não era privilégio da Grã-Bretanha, pois atingia vários países desenvolvidos e em desenvolvimento. Ela já vinha desde o início da década de 1970, com a crise de abastecimento do petróleo. Foi uma crise sistêmica do grande capital especulativo, causada pela flutuação de câmbio das moedas fortes do período, como o dólar e a libra esterlina. Com a flutuação do câmbio, já que não há lastro que as sustente, surge a necessidade de aumentar as reservas monetárias - na prática, significa imprimir mais papel-moeda. Com mais dinheiro circulando no mercado, menos valor agregado o dinheiro acumula. As moedas desvalorizam, os preços disparam, as mercadorias encalham e começa a recessão. Não foram os gastos públicos, nem os benefícios sociais que levaram à instabilidade econômica. Foi a desregulamentarização do capital especulativo que causou a recessão.
 
No entanto, isso nunca fica aparente. A mídia e os partidos políticos ligados ao capital financeiro insistem que o gasto com os benefícios sociais são os responsáveis pela crise. A onda de recessão que levou Margareth Thatcher ao número 10 da Downing Street, foi a mesma que levou Ronald Reagan à Casa Branca. E daqui começou uma nova fase da exploração capitalista. O mantra entoado era que os benefícios socias pesavam os cofres públicos, e a máquina burocrática do governo deveria ser enxugada. Estatais que não dessem lucro deveriam ser entregues ao setor privado, e assim seriam melhor administradas. Financiamentos estudantis deveriam ser cortados, incentivos à moradia reduzidos. O governo reduzia custos não para reverter o caos econômico, mas para ajudar o capital mundial a balancear sua receita. Ao cortar financiamentos à educação e à moradia, ao privatizar indústrias chaves para o crescimento econômico, os governos Reagan e Thatcher garantiram, às custas do contribuinte, que o capital teria lastro para mover sua espiral de especulação e apropriação, com recusros que eram públicos. Esse mote econômico formou a base do que se convencionou, anos mais tarde, de Consenso de Washington. Na verdade não havia consenso. Era uma receita amarga. Para se enquadrar nos moldes do capitalismo financeiro mundial, os países deveriam desonerar suas receitas. Provamos desse remédio amargo nos governos Collor e FHC. Se hoje a Petrobras divide os lucros do petróleo com a Halliburton, agradeçam em parte à Dama de Ferro e sua política de austeridade.
 
Analisando todo esse retrospecto, e levando em consideração os atuais modelos democráticos, uma questão vital se desenvolve e pode ser resumida no seguinte: é para isso que elegemos governantes? De acordo com o ideário democrático em que se pauta a sociedade ocidental, governos são eleitos para representar a vontade do povo, satisfazer as demandas da sociedade e garantir a todos o direito básico de acesso à educação, saúde, cultura e justiça. No entanto, os estudantes que protestaram contra o corte no orçamento das universidades públicas foram duramente reprimidos. Os trabalhadores que lutaram pela manutenção do seu direito básico ao trabalho foram espancados como animais indóceis. Os presos políticos do IRA, por se recusarem a serem tratados como míseros ladrões de galinhas, foram deixados para morrer de fome. Fomos criados com a noção de que a vontade do povo é soberana, e que nossos governantes são obrigados a ceder a essa vontade. Essa é uma visão totalmente distorcida da realidade política da nossa sociedade, como também é uma distorção ideológica do próprio conceito do que é democracia. A realidade política da nossa sociedade é que, apesar de elegermos nossos governantes, eles não são regidos pela vontade e soberania do povo, e sim pelos seus próprios interesses. Interesses de classe.  O sistema capitalista é regido por uma minoria montada em grandes conglomerados financeiros, e é amparada abertamente pelos estados, sem hesitação. Portanto não se engane.Você elege governantes que se preocupam com a manutenção dos privilégios do grande capital e da minoria que se beneficia dele. E pela manutenção desses privilégios o capital pode fazer concessões, mas nunca mudar seu caráter de exploração

Não me surpreende que em várias cidades inglesas (especialmente no norte do país, que concentra a maior parte da indústria pesada e extremamente afetado pelas política econômica do governo Thatcher), pessoas se reuniram para realmente celebrar a morte de Dama de Ferro. Os torcedores do Liverpool, time da primeira divisão inglesa de futebol, costumam cantar uma pitoresca canção em homenagem a Dama de Ferro: "Nós vamos fazer uma festa... Quando Maggie Thatcher morrer!"



Dama de Ferro. Os soviéticos deram esse apelido à Sra. Thatcher, de forma bastante ofensiva. A dama de ferro era um instrumento de tortura medieval. Um caixão de ferro fundido onde cabia um adulto em pé, e por dentro era cobertos com longos pregos. Ao fechar o caixão, os pregos perfuravam o infeliz, fazendo-o sangrar até a morte. A Sra. Thatcher não só aceitou o epiteto de bom grado, como fez exatamente isso: arrochou a classe trabalhadora de tal modo que a fez sangrar.

Existe uma verdade inconveniente nisso tudo. Certas coisas não podem ser perdoadas, porque certas coisas não podem ser esquecidas. Desejar a morte de uma pessoa não é uma atitude das mais nobres. Mas a morte não enobreçe o caráter, nem torna ninguém virtuoso. O que vem depois da vida é regido pela fé, pelo mistério, ou pelo nada. Mas isso não importa. As pessoas são o que elas deixam como legado em vida. E o legado da Sra. Thatcher é de erva daninha!

Por isso, nessa semana, eu me junto aos Reds de Liverpool e digo sem rubor: party everyday!

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