quarta-feira, setembro 26, 2018

O voto da Esquerda é pela sobrevivência - ou, Por que votarei em Ciro Gomes?


Na tese 11 de seus Conceitos sobre História, Walter Benjamin desenvolve uma crítica ferrenha à social-democracia alemã, a partir de uma análise do desenvolvimentismo propagado por eles. Para Benjamin, “nada foi mais corruptor para a classe operária alemã do que a opinião de que era ela que nadava com a corrente”. Ao sequestrar o proletariado alemão para uma visão idealista do trabalho, onde o desenvolvimento das forças produtivas significava, automaticamente, a emancipação politica da classe, a social-democracia alemã retirou o proletariado alemão de sua tarefa histórica – a revolução.

A tese 11 de Benjamin é, na verdade, um acerto de contas histórico com a traição da social-democracia alemã. Traição ideológica por retirar o proletariado alemão do horizonte revolucionário, mas também traição política. Optando pela via reformista, disputando os espaços de poder na recém-implantada República de Weimar, a social-democracia alemã deixou que a Direita alemã apontasse seus canhões contra a Liga Espartaquista e o Partido Comunista Alemão. O resto é história: com a vanguarda revolucionária desmantelada, nada se pode fazer quando estrondou o relâmpago do nazismo. Benjamin morreu dias depois de terminar esse manuscrito, em 1940, tentando fugir dos nazistas.

O Brasil sofre de incongruências crônicas em sua política. A começar pelo fato de que os partidos sociais-democratas brasileiros (PSDB/PSD/DEM) são ideologicamente liberais ou conservadores, em total antagonismo com a tradição social-democrática europeia. Por outro lado, partidos que deveriam ser minimamente socialistas (PT/PCdoB) optam por ocupar o vazio ideológico causado pela falta de um dirigismo progressista na política brasileira. Essas aberrações no espectro politico brasileiro abrem caminho para o chamado Centrão e seu fisiologismo. Transformam a democracia representativa em um jogo de cooptação: os partidos políticos maiores deixam-se canibalizar pela ditadura da minoria, e essa minoria mina a democracia aos poucos, em nome de seus interesses espúrios.

Para piorar nosso já conturbado cenário político, a aliança PT/PCdoB decidiu ocupar também o Centro ideológico. Realinhou a via nacional-desenvolvimentista na figura do Lula e inauguraram o lulismo. Com isso, o PT postou-se como única via democrática viável. Foi uma jogada de puro gênio. Figuras como Marina e Ciro Gomes, desde o fim do segundo governo Lula, perderam totalmente sua viabilidade ideológica. Militantes petistas históricos como Eduardo Suplicy perderam fôlego. O PDT esvazou-se e foi jogado ao fisiologismo. E as centrais sindicais que apoiavam o PT entregaram-se ao projeto lulista sem reservas. A corrente que levou o proletariado alemão na década de 1910, chegou ao Brasil na figura do Lula e do PT.

Foi uma jogada de puro gênio. Maligno. Quando precisou de bases sólidas para combater o retrocesso, o PT não as tinha. Pior: ao buscar apoio da Esquerda revolucionária, esta lhes virou as costas. Veio o golpe, veio o caos. De certa forma, a traição da social-democracia alemã foi vingada no dia 30 de agosto de 2016. Quando se abandona o horizonte revolucionário, quando se opta pela política viciada da ordem burguesa, você está fadado à conveniência dos poderosos. Essa foi uma lição que a Esquerda brasileira quis dar ao PT. Não adiantou. Pior: criou-se um vazio político que até hoje não foi preenchido.

Ao não deixar espaço de manobra para os demais partidos, o PT causou um problema para si e para outros. A opção dos outros partidos foi radicalizar. Se PSDB e DEM já eram liberais e conservadores, o discurso privatista lhes tomou de assalto. O MBL vampiriza o DEM paulistano de uma forma inimaginável, enquanto o PSDB é tomado pelo laissez-faire capitalista de João Dória. Em poucos anos, o partido NOVO será o refúgio daqueles que pregam a liberalização econômica cega. O que restará de PSDB e DEM, depois do canibalismo desse novo liberalismo, ainda é cedo para saber.

De outro lado, a verdadeira Esquerda socialista/comunista teve que abandonar seus aliados históricos para se distinguir diante da classe operária. Com isso perdeu visibilidade na própria classe. A Esquerda teve que re-ideologizar o movimento de massas, a luta sindical, o movimento estudantil. Nesse processo encontrou a classe dividida: ou totalmente alienada da luta, ou cooptada pelos movimentos ligados à aliança PT/PCdoB – o que, no fundo, é a mesma coisa. Nessa luta árdua, a Esquerda ainda tateia a melhor estratégia para ganhar lastro na luta, ignorando bravamente a sua pequenez.

Com o Centro loteado no fisiologismo e os extremos cada vez mais radicalizados, a burguesia brasileira construiu a sua alternativa com Bolsonaro. Aqui vemos o Brasil de 2018 repetir a Alemanha de 1933. Os partidos tradicionais brasileiros de hoje, assim como os partidos tradicionais alemães em seu tempo, são incapazes de gerir os interesses da burguesia brasileira, pois precisam balancear diversos interesses que constituem a política brasileira. As bases partidárias, as alianças políticas – mesmo que por conveniência – e a negociação institucional entre Executivo e Legislativo atrapalham os interesses econômicos da elite brasileira. Bolsonaro, ao contrário, sempre se apresentou como o político que vive à margem da política institucional, independente, que põe o dedo na ferida de todos, e que por isso é odiado tanto à Direita quanto à Esquerda. Aliando essa imagem de outsider com um discurso conservador e moralista, conseguiu arrebanhar uma parte considerável da população. E não para de crescer, conforme indicam as pesquisas.

A eleição de Adolf Hitler em 1933 foi uma tragédia para a Alemanha, embora fosse inevitável. Uma possível eleição de Bolsonaro em 2018 também será uma tragédia, pois a farsa ainda está longe de se consolidar. O partido da burguesia brasileira é o NOVO e isso está muito claro. No entanto, o NOVO é ainda o partido dos banqueiros, dos rentistas, dos especuladores, dos profetas do capitalismo selvagem. Ele ainda engatinha para galgar os espaços políticos necessários para ganhar atenção pública e viabilizar-se como alternativa. Com Bolsonaro, a burguesia brasileira cria um atalho para seus interesses.

Uma possível eleição de Bolsonaro não mudaria o panorama econômico no curto prazo, mas certamente mudaria o panorama político contra todos os partidos de centro-esquerda e extrema-esquerda. Bolsonaro é louco o suficiente para perseguir todos nós, baseado nas mais loucas teorias de conspiração. Com Bolsonaro eleito, o dia em que organizarmos a primeira resistência, a primeira greve que for, será o pretexto para o início da caça às bruxas. A aliança PT/PCdoB, como partidos já estabelecidos, sofrerá mas se adaptará. Partidos como o PCB e o PCO não terão a mesma sorte. Fragmentados em sectarismo, incapazes de organizar uma grande resistência unificada, serão todos perseguidos e liquidados. Se a burguesia brasileira for piedosa, deixará que a cláusula de barreira se encarregue desse serviço sujo. Seja como for, isso também está claro: o caminho para o retrocesso está pavimentado e não há nada que possamos fazer.

O que nos resta é a sabotagem desse retrocesso, e o único caminho possível para isso é não desperdiçar essa eleição presidencial. É necessário reconhecer que a candidatura de Boulos foi um erro estratégico, um casamento de conveniência onde nenhum dos dois lados ganhou o que gostaria. Com seus 0 a 1% de intenções de voto, Boulos não ganhou a projeção necessária enquanto liderança de Esquerda, e a aliança PSOL/PCB não se afirmou como alternativa à Esquerda da aliança PT/PCdoB. A candidatura de Marina dispensa comentários. Marina é uma figura acarismática, asséptica, de um jeito que parece não existir no mundo físico. Mesmo quando estava certa, parece estar errada. Não convence. 2018 deve ser seu ano derradeiro.

A candidatura de Haddad é, para o conjunto dos partidos socialistas e comunistas brasileiros, uma candidatura pelo esvaziamento definitivo da Esquerda. Haddad, Manuela D’Ávila e Gleisi Hoffmann deram entrevista ao site Anticast (um podcast de centro-esquerda não-alinhado a qualquer partido), que também foi autorizado a divulgar partes da entrevista que Lula deu antes de ser preso, e que é a base de seu livro lançado pela Boitempo. Todos são claros em afirmar que o PT é incapaz de uma estratégia revolucionária que não o privilegie enquanto protagonista. A aliança PT/PCdoB tornou-se, para os demais partidos de Esquerda, como o gigante da fábula infantil que arrasa e destrói plantações, em nome de uma paz desigual para os moradores do vilarejo. Uma estratégia democrática com o PT é um suicídio político; sem ele é uma tarefa inglória. Em suma, o PT legou para a Esquerda brasileira o imobilismo da luta de classes, e por consequência sua superação.

Minha posição nessa eleição é menos ideológica e mais pragmática: Ciro Gomes. É ele quem deveria ser, desde o início, o candidato da centro-esquerda. Idealmente, com Manuela D’Ávila candidata à vice. Com essa manobra, levaria uma grande parcela do campo progressista com ele, garantiria uma frente ampla no segundo turno e o PT, fora dos holofotes, teria tempo para uma reorganização estratégica. Infelizmente o PT é incapaz dessa grandeza e leva o PCdoB a reboque da sua dança na beira do abismo. Nesse cenário de candidaturas de Esquerda pulverizadas, eleger o Ciro significa deslocar a aliança PT/PCdoB do seu pseudo-protagonismo na Esquerda brasileira. Eleger o Ciro também significa viabiliza-lo como representante do nacional-desenvolvimentismo, redirecionando essa plataforma para o seu núcleo histórico, que é o PDT. Além disso, em todos os cenários de segundo turno, Ciro é o único com chance de derrotar Bolsonaro com certa margem, enquanto Haddad e Alckmin seriam eleitos empatando tecnicamente com ele. Isso não é desprezível. Com a adesão popular que tem, Bolsonaro se sente confiante de que levará a eleição com folga, em qualquer cenário. Qualquer resultado que não reflita essa percepção, principalmente no caso de um empate técnico, criará um cenário tumultuoso na eleição: Bolsonaro não reconhecerá o resultado, pedirá recontagem, fortalecerá um mundo de notícias falsas sobre a urna eletrônica, e não descansará enquanto não lhe passarem a faixa. Será o Brasil de 2018 repetindo a Alemanha de 1933.

No entanto, esclareço: não tenho ilusões com Ciro Gomes. Seu discurso nacionalista, de defesa do patrimônio estatal, não me convence. Sei que se ele estiver numa posição de desagradar o setor progressista, a fim de garantir o superávit primário, ele o fará. Ele pode não privatizar a Petrobrás ou a Eletrobrás, visto que são estratégicas. Uma estatal paquidérmica como os Correios pode muito bem entrar em um futuro pacote de ajustes do seu governo. Esse, no entanto, é um risco que o conjunto da Esquerda deve estar consciente de correr, pelo bem de sua sobrevivência. A solução ideológica com Boulos está fadada ao fracasso. O voto útil em Haddad é uma sentença de morte lenta para a luta revolucionária, enquanto que uma vitória de Bolsonaro será uma sentença de morte imediata.

Vejo as redes sociais se ufanarem de que haverá luta caso Bolsonaro ganhe. “O único diálogo possível com o fascismo é a ponta da baioneta”, vociferam confiantes. Lamento que 1964 ensinou nada para essa nova geração de comunistas. Vão repetir o erro de nossos velhos camaradas, procurando rifles nos sindicatos para resistir aos militares e encontrando nada. O voluntarismo cego, sem uma análise crítica das condições da luta, levou vários de nossos camaradas para a morte ou a tortura. Eu, que estou afastado da luta por diversos motivos, não quero minha consciência pesada por ser conivente com a cegueira de meus companheiros, só porque não estou na barricada. Pelo menos nesse momento nós, que construímos a Esquerda brasileira, devemos tomar consciência de nossa pequenez, de nossa inabilidade de manejar as massas e construir uma verdadeira vanguarda revolucionária, e reconhecer que não há muito o que fazer a não ser sobreviver. Considerem esse os dois passos para trás da nossa geração.

Por tudo isso exposto é que eu declaro meu voto para presidente em Ciro Gomes.