quarta-feira, abril 12, 2006

Minha Páscoa Musical - Parte III

ANTON BRUCKNER
Sinfonia nº9
Te Deum
Frances Yeend, Martha Lipton, David Lloyd, Mack Harrell
Coro Westminster de Nova York
Orquestra Sinfônica da Columbia
Bruno Walter, reg.

Nunca me esqueço da observação de um querido amigo (meio ateu, meio agnóstico) sobre a música de Bruckner: “só através dela eu consigo vislumbrar a existência de ‘Deus’”. Realmente, citando também o maestro Eugen Jochum, existe em Bruckner um místico senso de união com Deus, que não encontra paralelo na obra de nenhum outro compositor, além de Bach.

Foi justamente esse querido amigo que me recomendou Bruckner, há bem uns quatro anos, sabendo de minha especial predileção por Wagner. Bruckner admirava muito Wagner, chegando até a dedicar-lhe uma sinfonia, sua terceira. Mas eu diria que os dois trilharam caminhos opostos. Minha apreciação de Wagner é baseada em conceitos artísticos, filosóficos, estéticos, e por vezes até sexuais. Mas Bruckner é puramente espiritual. Ele mostra essa intenção desde o início, em toda a sua obra.

Essa sinfonia tem uma bela história. Foi composta nos últimos anos de vida do compositor, entre 1889 e 1896. Adoentado, Bruckner se esforçava para terminar a obra. Numa manhã, seu médico particular o encontrou de joelhos, orando: “querido Deus, permita que eu me recupere logo; tu sabes que eu preciso terminar a nona”. Bruckner morreu em 1896, deixando a partitura da nona inacabada, faltando apenas o movimento final. E na primeira capa, uma dedicatória: Zu dem Lieben Gott, “ao querido Deus”.

Mesmo incompleta, a nona de Bruckner é uma obra-prima. Começando com o primeiro movimento, Feierlich, misterioso (Solene, misterioso). Essa é a indicação de tempo da partitura, e não serve só para ditar a rítmica da peça. Nesse caso, como em outros, essa também é a indicação de como o regente deve conduzir a orquestra na execução da peça. Os metais são os responsáveis pelo caráter solene do movimento: são sempre fortes e imperiosos. As madeiras e as cordas são as responsáveis pelo mistério, e o efeito da orquestra em tutti é a mesma sensação de ouvir um grande órgão de igreja.

O Te Deum também é uma das últimas obras de Bruckner. Foi composto em cima de um texto em latim comumente usado na homilia católica. É um texto de grande exaltação à Deus, como criador e senhor de todas as coisas: Sanctus, Sanctus, Sanctus/Dominus Deus Sabaoth/Pleni sunt cæli et terra/Majestatis gloria tuæ (Santo, Santo, Santo é o Senhor das Hostes Celestes. Os céus e a terra são plenos da sua Majestade.).


Creio que Bruckner não é mais famoso porque vive à sombra de grandes sinfonistas, como Brahms, Tchaikovsky e principalmente Mahler. Sinceramente, que continue assim. São poucos os regentes que conseguem transmitir toda a transcendência da música de Bruckner. E principalmente sua devoção.

Minha Páscoa Musical - Parte II


JOHANN SEBASTIAN BACH
A Paixão segundo S. Mateus
Peter Pears, Hermann Prey, Ely Ameling, Marga Höffgen, Fritz Wunderlich, Tom Krause.
Stuttgarter Hymnus-Chorknaben
Orquestra de Câmara de Stuttgart
Karl Münchinger, reg.

Sempre me perguntei porquê toda a encenação do martírio de Cristo é chamada de “Paixão”. O termo hoje possui uma conotação carnal, e seu uso nos redutos evangélicos me incomoda ao extremo. Mas descobri recentemente (durante pesquisas para este artigo) que a conotação carnal e espiritual da palavra possui uma linha de desenvolvimento lógica. A palavra “paixão” deriva do vocábulo latino passio, e significa literalmente “sofrimento”. A cultura dos diversos povos de origem latina fez com que a semântica da palavra se alargasse, absorvendo mais significados. E atribui-se a Shakespeare a autoria da primeira conotação sexual da palavra: “And that my sword upon thee shall approve, and plead my passions for Lavinia’s love” (Tito Andronico. Ato II, cena 1).

A Paixão, na história da música, é uma forma específica de oratório. O texto base, claro, é a narração da crucificação de Cristo contida nos evangelhos sinóticos, e a peça era comumente encenada na sexta-feira santa. Costuma-se dizer que o oratório é uma espécie de “ópera religiosa”. Handel, grande compositor de oratórios, era um operista de mão cheia, o que não é o caso de Bach. No texto anterior eu disse que o compositor de ópera, por lidar com “sentimentos à flor da pele”, tem facilidade de pôr em música a religiosidade. Mas isso não impede o surgimento de um compositor que possua pleno entendimento do caráter pio do texto religioso. Um artista que faz da música religiosa a sua própria profissão de fé. Só dois compositores, na minha opinião, alcançaram essa excelência: Bach e Bruckner (desse último falaremos em breve).

Creio que a associação entre o oratório e a ópera seja melhor explicada dentro da idéia do “drama musical” de Richard Wagner, independente da centena de anos que separam os dois compositores. Basicamente, Wagner imaginou suas óperas tendo como base o uso dos “motivos”, temas instrumentais que ocorreriam na ação da música para caracterizar um personagem, para expressar um sentimento específico, e assim por diante. A idéia não é propriamente nova na história da música, mas Wagner é o grande responsável por teorizar esse conceito e transformá-lo na idéia de drama musical.

De certa forma, creio que Bach antecedeu Wagner na concepção do drama musical, até pela própria estrutura da A Paixão segundo S. Mateus. Bach concebeu três planos temporais para a Paixão. O primeiro, é a narração em si da trama feita pelo Evangelista (Pears). Toda a ação dramática (musicalmente falando) se desenrola à partir dele, que narra a história e dá a entrada para a intervenção das demais personagens. Justamente por ter essa função de narrador, sua linha de canto não possui uma linha melódica muito elaborada, por assim dizer. Para caracterizar o Evangelista, Bach faz uso de um recurso chamado recitativo, que é acompanhado por um instrumento contínuo, geralmente o cravo.

O segundo plano é o círculo das personagens apresentadas pelo Evangelista. Nesse momento as personagens ainda não desenvolveram uma linha de canto expressiva. Todas estão presas no esquema do recitativo, mas todas possuem uma orquestração que as diferencia. Jesus (Prey) é o melhor exemplo disso. Sua linha de canto é suave e flúida, e tem sua correspondência na orquestra com os primeiros violinos. Eles são responsáveis por acompanhar as intervenções de Jesus, em legatto continuo. O efeito que se obtêm é de uma profunda santidade, como se uma presença divina sempre o acompanha-se. Está aqui um exemplo rudimentar do uso de “motivos” como Wagner havia teorizado: um tema musical recorrente na obra, que é associado a uma personagem e sua características principais. Bach faz uso desse recurso com maestria.

O terceiro plano temporal é o mais importante para o drama musical da A Paixão segundo S. Mateus: é o plano do homem comum, representado pelo quarteto de solistas: Ely Ameling, soprano; Marga Höffgen, contralto; Fritz Wunderlich, tenor; Tom Krause, baixo. A função deles é a mais importantes de todas pois eles não contam a história, e sim interagem com a história. Os solistas são responsáveis por expressar o caráter humano das personagens bíblicas, mostrando que o sofrimento de Cristo não pode ficar somente impresso nas páginas da Bíblia, e sim fazer parte do nosso imaginário. Musicalmente, saímos do plano dos recitativos para uma linha de canto mais elaborada, que chamamos de ária. São peças melodicamente mais expressivas e harmonicamente mais complexas que os recitativos, onde o cantor têm toda a liberdade para mostrar sua técnica e sua interpretação.

Com quase quatro horas de duração, A Paixão segundo S. Mateus é um épico da música religiosa e um marco na história da música. Isso não impediu que Bach amargasse mais de 60 anos de ostracimo após sua morte, em 1750. Só em 1829, sob a regência de Felix Mendelssohn, essa mesma A Paixão segundo S. Mateus reabilitou Bach à seu pedestal na história da arte. Justiça feita.

segunda-feira, abril 10, 2006

Minha Páscoa Musical - Parte I


Um dos hábitos que eu adquiri com o tempo, foi o de passar os feriados santos ouvindo música religiosa. Para mim, que sou movido por música, é uma forma bem especial de celebrar os ritos cristãos, e essa Páscoa não será diferente. Como vai funcionar? Recolhi as obras religiosas de diversos compositores, que tenham como tema comum a Páscoa, a idéia de morte e ressurreição, ou algo que provoque em mim alguma dessas sensações. Escolhidas as obras, distribuo-as pelos dias de feriado, de quinta a domingo.

Essa é uma das obras que eu pretendo ouvir:

W.A. MOZART
Requiem
Edith Mathis, Julia Hamari, Wieslaw Ochman, Karl Ridderbusch
Coro da Ópera Estadual de Viena
Orquestra Filarmônica de Viena
Karl Böhm, reg.

Esqueçam qualquer história que vocês já ouviram sobre o Requiem de Mozart, principalmente a do filme Amadeus, de Milos Forman. O que você ouviu (e viu) faz parte de um repertório de factóides, já plenamente desmistificados pelos estudiosos.

A encomenda da obra partiu do Conde Walsegg-Stuppach, em 1791, que queria homenagear a esposa com uma grande missa fúnebre. Mozart estava no auge de sua efervecência criativa. Por exemplo, em um curto espaço de semanas Mozart estreou suas duas últimas óperas: La Clemenza di Tito (A Clemência de Tito) em Praga, dia 01 de setembro, e Die Zauberflöte (A Flauta Mágica) em Viena, dia 30 de setembro. E entre aulas de piano, rodas de bilhar e festas, Mozart se esforçava para compor o Requiem. Como sabemos, ele o deixou inacabado e coube a um de seus discípulos o término da obra.

E estruturalmente, o que é um Requiem? Requiem vem do latim e significa “descanso”. Uma Missa de Requiem tem como base textual a homilia católica para um ofício fúnebre, que pode ser feito exatamente após o enterro ou decorrido algum tempo, em memória do falecido. São cânticos em latim, cuja ênfase seria desejar uma boa passagem para o morto e misericóridia para os vivos. Para manter o caráter fúnebre da peça, as passagens Gloria e Credo (comuns nas missas regulares e que possuem um espírito celebrativo) são suprimidas, e é inserido o texto Dies Irae (Dia de ira).

Vários outros compositores compuseram um Requiem. Giuseppe Verdi compôs um lindíssimo (o meu favorito, sem dúvida. Mas estamos no Ano Mozart...), cheio de dramaticidade. Gabriel Fauré também é muito celebrado por seu Requiem, assim como Hector Berlioz e Antonin Dvořak. Johannes Brahms e Lord Benjamin Britten compuseram Requiens bem interessantes. O de Brahms é chamado Ein Deutsches Requiem (Um Requiem Alemão), e não usa textos católicos; usa trechos da Bíblia de Lutero, em alemão. O de Britten é chamado War Requiem (Requiem de Guerra), que interpola os textos da homilia católica com poemas anti-belicistas de Wilfred Owen, oficial inglês morto na Primeira Guerra Mundial.

Mozart não era um compositor costumeiro de música religiosa. Além do Requiem, compôs também missas, mas não se aprofundou no gênero. Isso em absoluto tira o magnetismo de suas passagens. São eloqüentes e brilhantes, que encontram paralelo com um gênero musical muito caro a Mozart: a ópera. Dos compositores citados acima, pelo menos quatro aventuraram-se no teatro lírico. Penso que esses compositores tem maior facilidade na composição de peças sacras, pois lidam com “sentimentos à flor da pele”. Não são todos que conseguem, em música, transpor os limites do tangível. Digo tangível porque a fé, o amor e a compaixão, quando plenamente entendidos, ultrapassam a existência da razão do mundo. É esse detalhe que diferencia o compositor do mestre: entender o ser humano na sua interessa, quando ele experimenta a grandeza do seu entendimento.

Para encerrar, algumas curiosidades atuais sobre o Requiem de Mozart: 1) foi escolhido pelo governo norte-americano como o Requiem oficial pelas vítimas do 11 de setembro; 2) foi escolhido na comunidade Requiem, no Orkut, o requiem em homenagem ao papa João Paulo II; 3) José Carreras gravou um Requiem de Mozart nos escombros de um igreja ortodoxa na Bósnia, em homenagem aos mortos na guerra civil; 4) A minisérie Os Maias, da Rede Globo, teve o Requiem de Mozart na sua trilha sonora.