segunda-feira, setembro 18, 2017

Queermuseu: quando a ilusão choca mais que a realidade.

Todo dia de manhã eu paro com Cecília em frente ao espelho. Ela olha, ri, já se reconhece. E como o espelho é muito leve, ela avança para cima dele e levanta a moldura para olhar do outro lado. Ela faz o mesmo quando mostramos uma foto sua no celular.

Cecília já entendeu que as coisas ao seu redor têm dimensões: a frente, o atrás e os lado - as famosas três dimensões. Como ela ainda não abstraiu para o fato de que a imagem projetada do espelho é uma ilusão, ela espera ver o "fundo" da imagem do espelho, ou seja, a projeção tendendo ao infinito daquilo que ela vê. Porque é isso que ela entende da concretude sensível do mundo: algumas coisas estão perto, outras estão longe, e adiante do olhar encontra-se uma infinidade de elementos a serem vistos e tocados.

A obra de arte – especificamente a pintura e a fotografia – opera da mesma forma ilusória que o espelho. Diante de nós se apresenta uma paisagem: você vê as árvores, o céu, o riacho, mas aquilo que se vê não existe para além da moldura ou do porta-retrato. Por mais realista, colorida e iluminada que for a pintura, ou o retrato, aquela paisagem ou aquele retratado são meros elementos visuais, sensíveis. Da árvore não se pode colher os frutos, e o retratado não pode cumprimentar.

É o que eu, no calor desse momento, estou chamando de paradigma de Magritte. Observem a imagem que ilustra o post, um quadro do pintor belga René Magritte (1898-1967). Obviamente que, ao olharmos o quadro, entendemos que ele pintou um cachimbo. Mas atenção para o que ele escreve abaixo do cachimbo: “isso não é um cachimbo”. Mas como? Não estamos vendo um cachimbo? Não concordamos que é um cachimbo? Não reconhecemos ali o objeto cotidiano que denominamos cachimbo? Sim, mas nesse cachimbo pode-se tocar, colocar fumo, leva-lo à boca e apreciar o fumo? O que Magritte impõe ao observador é a lembrança daquilo que Cecília já aprendeu: um objeto só se estabelece como objeto diante de sua concretude. Enquanto imagem pictórica, o cachimbo é tão somente um símbolo, um código, uma ideia; o cachimbo sobre a mesa, pronto para ser utilizado, esse sim é um objeto material, concreto, real.

Isso tudo me serve de introdução para explicitar minha posição sobre a exposição “Queermuseu”, e toda a [falsa] polêmica que ela suscitou. Os moralistas e catequistas dos “bons costumes” pecam, de um lado, pela ignorância e, por outro, pela hipocrisia. Porque armam um cavalo de batalha por nada mais do que uma imagem, um símbolo, uma ideia. Por mais gráfica que seja a cena de zoofilia, ou por mais horripilante que seja a cena de estupro, são só imagens. Há tanta violência ali quanto há perfume nas margaridas de Van Gogh. O que o paradigma de Magritte pode estabelecer como premissa é que ao se considerar como realidade aquilo que é mera ilusão, nega-se a existência da realidade.

Nenhuma imagem deve ser mais gráfica ou horripilante que a realidade. Pois tudo o que existe como representação imagética, existe como expressão fenomênica do real. Magritte pinta o cachimbo porque existe um objeto concreto chamado cachimbo. Adriana Varejão pinta uma cena de zoofilia porque existe, na realidade concreta, a perversão sexual. Não é necessária “apologia” a zoofilia, ao estupro, e ao abuso infantil: eles existem, são reais e matam diuturnamente. O que a obra de arte faz, na sua operação simbólica, é plasmar o real em um código ético universal. Se vemos uma cena de abuso infantil, em uma pintura ou em um filme, o que deve nos chocar e nos revoltar não é a cena em si, mas sim o quanto de abuso, físico e psicológico, ocorre silenciosamente deixando marcas reais em pessoas reais.

Se a arte, como imitação da realidade, é uma ilusão que mistifica a realidade, o que resta para a arte - na verdade, aos artistas? Resta rejeitar o caráter mistificador da realidade que está contido na obra de arte. No momento em que se quebra essa relação mistificadora da arte com a realidade, o que se evidencia é o arcabouço histórico que estrutura o artista e sua obra. A censura imposta à exposição Queermuseu não é só uma censura a artistas. É uma censura à própria realidade, como se fosse possível relegar à invisibilidade aquilo que a arte, dentro de sua função social, tem o dever de levantar.