Todo
dia de manhã eu paro com Cecília em frente ao espelho. Ela olha, ri, já se
reconhece. E como o espelho é muito leve, ela avança para cima dele e levanta a
moldura para olhar do outro lado. Ela faz o mesmo quando mostramos uma foto sua
no celular.
Cecília
já entendeu que as coisas ao seu redor têm dimensões: a frente, o atrás e os
lado - as famosas três dimensões. Como ela ainda não abstraiu para o fato de
que a imagem projetada do espelho é uma ilusão, ela espera ver o
"fundo" da imagem do espelho, ou seja, a projeção tendendo ao
infinito daquilo que ela vê. Porque é isso que ela entende da concretude
sensível do mundo: algumas coisas estão perto, outras estão longe, e adiante do
olhar encontra-se uma infinidade de elementos a serem vistos e tocados.
A obra
de arte – especificamente a pintura e a fotografia – opera da mesma forma
ilusória que o espelho. Diante de nós se apresenta uma paisagem: você vê as
árvores, o céu, o riacho, mas aquilo que se vê não existe
para além da moldura ou do porta-retrato. Por mais realista, colorida e
iluminada que for a pintura, ou o retrato, aquela paisagem ou aquele retratado
são meros elementos visuais, sensíveis. Da árvore não se pode colher os frutos,
e o retratado não pode cumprimentar.
É o
que eu, no calor desse momento, estou chamando de paradigma de Magritte. Observem
a imagem que ilustra o post, um quadro do pintor belga René Magritte (1898-1967).
Obviamente que, ao olharmos o quadro, entendemos que ele pintou um cachimbo.
Mas atenção para o que ele escreve abaixo do cachimbo: “isso não é um
cachimbo”. Mas como? Não estamos vendo um cachimbo? Não concordamos que é um
cachimbo? Não reconhecemos ali o objeto cotidiano que denominamos cachimbo?
Sim, mas nesse cachimbo pode-se tocar, colocar fumo, leva-lo à boca e apreciar
o fumo? O que Magritte impõe ao observador é a lembrança daquilo que Cecília já
aprendeu: um objeto só se estabelece como objeto diante de sua concretude.
Enquanto imagem pictórica, o cachimbo é tão somente um símbolo, um código, uma ideia; o
cachimbo sobre a mesa, pronto para ser utilizado, esse sim é um objeto
material, concreto, real.
Isso
tudo me serve de introdução para explicitar minha posição sobre a exposição
“Queermuseu”, e toda a [falsa] polêmica que ela suscitou. Os moralistas e
catequistas dos “bons costumes” pecam, de um lado, pela ignorância e, por
outro, pela hipocrisia. Porque armam um cavalo de batalha por nada mais do que
uma imagem, um símbolo, uma ideia. Por mais gráfica que seja a cena de
zoofilia, ou por mais horripilante que seja a cena de estupro, são só imagens. Há
tanta violência ali quanto há perfume nas margaridas de Van Gogh. O que o paradigma
de Magritte pode estabelecer como premissa é que ao se considerar como
realidade aquilo que é mera ilusão, nega-se a existência da realidade.
Nenhuma
imagem deve ser mais gráfica ou horripilante que a realidade. Pois tudo o que
existe como representação imagética, existe como expressão fenomênica do real.
Magritte pinta o cachimbo porque existe um objeto concreto chamado cachimbo.
Adriana Varejão pinta uma cena de zoofilia porque existe, na realidade
concreta, a perversão sexual. Não é necessária “apologia” a zoofilia, ao
estupro, e ao abuso infantil: eles existem, são reais e matam diuturnamente. O
que a obra de arte faz, na sua operação simbólica, é plasmar o real em um
código ético universal. Se vemos uma cena de abuso infantil, em uma pintura ou
em um filme, o que deve nos chocar e nos revoltar não é a cena em si, mas sim o
quanto de abuso, físico e psicológico, ocorre silenciosamente deixando marcas
reais em pessoas reais.
Se a arte, como imitação da realidade, é uma ilusão que mistifica a realidade, o que resta para a arte - na verdade, aos artistas? Resta rejeitar o caráter mistificador da realidade que está contido na obra de arte. No momento em que se quebra essa relação mistificadora da arte com a realidade, o que se evidencia é o arcabouço histórico que estrutura o artista e sua obra. A censura imposta à exposição Queermuseu não é só uma censura a artistas. É uma censura à própria realidade, como se fosse possível relegar à invisibilidade aquilo que a arte, dentro de sua função social, tem o dever de levantar.
Se a arte, como imitação da realidade, é uma ilusão que mistifica a realidade, o que resta para a arte - na verdade, aos artistas? Resta rejeitar o caráter mistificador da realidade que está contido na obra de arte. No momento em que se quebra essa relação mistificadora da arte com a realidade, o que se evidencia é o arcabouço histórico que estrutura o artista e sua obra. A censura imposta à exposição Queermuseu não é só uma censura a artistas. É uma censura à própria realidade, como se fosse possível relegar à invisibilidade aquilo que a arte, dentro de sua função social, tem o dever de levantar.
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