sexta-feira, maio 12, 2006

Crítica: Idomeneo no TMRJ (demorou, mas saiu!)


Como parte das celebrações mundiais dos 250 anos de Mozart, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro levou à cena sua ópera Idomeneo, composta em 1770. Não é dos melhores trabalhos de Mozart para teatro lírico, mas serve pelo ineditismo. Ao que parece, a ópera nunca foi apresentada no Brasil.

Decidi prestigiar a ópera no domingo, dia 30 de abril. Com os ingressos custando R$1,00 estava consciente do que me aguardava. Cheguei relativamente cedo e encarei uma fila que dava uma volta pelo quarteirão aos fundos do Theatro. Atrás de mim, um rapaz confundia alhos com bugalhos, cantarolando a quinta sinfonia de Beethoven. À minha frente, uma senhora mostrava para a amiga a miríade de guloseimas que iria distrair suas crianças durante as quase quatro horas de espetáculo. E dentro da sala, uma outra senhora não se cansava de tirar fotos dos cantores em ação no palco. São exemplos de pessoas sem a mínima noção de etiqueta em um teatro de ópera, mas eu não estava em posição de exigir nada. Fiz força para não reclamar e segui com minha apreciação do espetáculo.

Embora possuindo alguns traços originais, a produção dirigida pelo Sr. André Heller-Lopes é um espelho de outro Idomeneo, levado à cena pela Metropolitan Opera de NY e dirigida por Jean-Pierre Ponelle em 1981. A comparação é inevitável, para azar do Sr. Heller-Lopes. Baseia-se em figurinos do século XVIII moldurados por cenários que lembram a Antiguidade Clássica. Alguém pode até dizer que esse era o costume na época de Mozart, e era mesmo. Mas estamos no século XXI. Esse costume não tem mais razão de ser praticado. E por prestigiar outras produções dirigidas pelo Sr. Heller-Lopes, posso afirmar que não houve intenção nenhuma de revisitar antigas tradições.

Os figurinos são o ponto forte da produção. São bem montados e de muito bom gosto, onde as cores e os modelos distinguem cada grupo que atua na trama. Os cretenses usam uma combinação de verde com branco, os troianos usam só azul-claro e os gregos usam só preto. Devo dizer que foi uma idéia muito bem pensada e que me agradou muito. A concepção dos cenários também é digna de elogios, apesar de pecar ora pelo excesso, ora pela falta de sentido. Mas isso não é tanto demérito do cenógrafo, e sim do diretor.

O Sr. Heller-Lopes não peca só por querer requentar velhas idéias, mas pela total falta de bom senso na direção do seu espetáculo. A ópera foi bem nos primeiros dois atos, mas no terceiro ato resolveu-se abusar do mal-gosto. Não contente em deixar a destruição causada pela serpente na imaginação da platéia, o Sr. Heller-Lopes pendurou pelo palco peças inteiras de carne crua, transformando o Theatro num açougue! Fez ainda com que o Grande Sacerdote de Netuno atirasse ao chão alguns bifes crus enquanto dizia “Eis o que resta do teu povo”. Nossos diretores têm muita imaginação, mas não a utilizam de forma inteligente.

Outra idéia infeliz do Sr. Heller-Lopes foi instalar um chafariz durante a ária Zeffiretti lusinghieri. Os jatos d’água eram tão fortes que atrapalhavam a audição do soprano Silviane Bellato. Foi tamanha a minha indignação que eu quase gritei “desliga esse troço André Heller!”. Essa é uma lição que nossos diretores teimam em não aprender. Qualquer recurso cênico que atrapalhe o canto, e a apreciação do canto, deve ser deixado de lado! Não interessa se fica bonito, transgressivo ou tradicional; é a música, é o canto que devem sempre estar em primeiro plano, e qualquer concepção de espetáculo deve estar submetida ao temperamento da música. Nunca o contrário!

Falando agora dos cantores. A política de baixo custo do Theatro Municipal faz com que a casa invista em cantores nacionais, sem esquecer nossas estrelas com carreira consolidada no exterior. Para o papel de Idomeneo, foi escalado o tenor carioca Fernando Portari. É nosso tenor de maior sucesso no exterior, e no TMRJ já encarnou Alfredo (La Traviata, de Verdi), Nemorino (L’Elisir d’Amore, de Donizetti) e Walther von der Wogelveide (Tannhäuser, de Wagner). Fez um Idomeneo vocalmente perfeito, porém cenicamente insano, histérico até. Mas a marcação de cena pedia isso, não foi interpretação pessoal do cantor. Como Idamante, o mezzo Luisa Francesconi foi o destaque da tarde. Uma voz limpa e espaçosa, muito agradável de se ouvir. Na trama da ópera, Idamante é o grande herói: justo em suas decisões, passional em seus sentimentos. Francesconi encarou o papel com maestria, com destaque para sua ária Se cola ne' fati e scritto, e foi coroada com a maior ovação da platéia. Bem merecido! Silviane Bellato (Illia) e Janete Dornellas (Elletra) não fizeram uma performance brilhante, mas não comprometeram a récita. Assim também foi a regência de Silvio Barbato.

Por fim, fica a boa impressão de que os eventos a R$1,00 do TMRJ valem à pena para formação de público. Só espero que o nível de espetáculos mantenha-se nesse patamar, com tendências de melhora. Porque a programação continua muito fraca!