quarta-feira, julho 23, 2014

O anacronismo do verbo ouvir em quatro movimentos: Gustavo Dudamel e a Orquestra Sinfônica Simón Bolívar no TMRJ.

I.
 
Andante comodo. Cadeiras rangem de espectadores buscando a melhor posição. Serão quase duas horas de concerto, sem intervalo. O sangue precisa circular. Outros tossem violentamente, um hábito tradicional de quem senta nos andares superiores do Theatro Municipal. Alheios à cacofonia de gargantas ao redor, uma multidão de pessoas estão ávidas para registrar o deslumbre que é o salão do Theatro Municipal. E não há só a necessidade de registrar o Theatro, mas também registrar-se no Theatro. Selfies e check-ins são parte do novo habito de ir à concertos.
 
Mas haverá um concerto no Theatro Municipal. No programa: a Nona sinfonia de Gustav Mahler, sua última obra sinfônica completa. No palco, dois orgulhos nacionais do nosso país vizinho, a Venezuela: um é a Orquestra Sinfônica Simón Bolívar, um caso raro de sucesso entre orquestras latino-americanas, que une qualidade técnica de nível internacional, experiência e formação jovens musicistas. São os louros de um trabalho excepcional de musicalização infanto-juvenil difundido em toda a Venezuela, conhecido como El Sistema.
 
O outro é o fruto mais famoso do El Sistema, e diretor artístico da OSSB, o maestro Gustavo Dudamel. Jovem, porém com larga experiência, Dudamel também é diretor artístico da Orquestra Filarmônica de Los Angeles e também já regeu as grandes orquestras de Viena, Berlim e Nova Iorque. Mas seu vínculo com a Simón Bolívar é mais que duradouro. Conjunto e regente colocaram a vilipendiada Venezuela no mapa cultural musical mundial. Curioso pensar que a orquestra do país que não tem frango, nem papel higiênico, é largamente superior que seus pares no Brasil, e capitaliza mundialmente com a venda de CDs e DVDs.
 
Começa a sinfonia. Surge o primeiro tema. Uma elegia melodiosa e plácida, porém irregular. Começa com suaves toques de trompete e o dedilhar de uma harpa. Soa como um realejo desafinado, ou batidas irregulares de um coração. Seria o coração do próprio Mahler à falhar? O compositor morreria semanas após concluir a composição de sua Nona, uma infeliz coincidência que o iguala à Beethoven, Schubert e Bruckner tanto na genialidade quanto no infortúnio. As cordas desenvolvem o tema, acompanhados da clarineta e do corne inglês. Com uma modulação, os violinos inserem um pequeno momento de tensão. Violas acompanham. Uma moça se debruça sobre a poltrona para tirar uma foto da orquestra em ação. As trompas tornam-se mais incisivos, violas e violinos se agitam, crescem em volume, como que anunciando uma tempestade. Click. Junto com as cordas crescem trompetes e trombones, flautas e clarinetas, o tímpano ribomba vigorosamente, e como o sol que vara o amanhecer de luz, a orquestra em uníssono inunda o teatro de som. Click, canta também a máquina da moça, disparando um clarão de flash no salão escurecido. Um momento congelado e registrado para a rede social. No palco, o movimento segue.
 
A composição da Nona precedeu um período conturbado da vida de Mahler. Em 1907, apesar de vários triunfos como diretor artístico da Ópera de Viena, Mahler foi vitima de uma ferrenha campanha difamatória encampada pela alta sociedade vienense. A forma intempestiva com que comandava a Ópera, seu casamento com a socialite Alma Schindler, sua ascendência judaica, tudo era motivo de discórdia e fofoca, amplamente divulgada na imprensa. Mahler decide, então, pedir demissão da Ópera de Viena e retirar-se para sua casa de campo. Lá, a filha Maria, de quatro anos, morreu de uma infecção de escarlatina. A morte de Maria aprofundou uma crise conjugal que se arrastava à alguns meses, e os rumores de que Alma e o arquiteto Walter Gropius (futuro fundador da Bauhaus) mantinham um relacionamento provaram-se verdadeiros. Logo em seguida, veio o diagnóstico da doença cardíaca que o vitimaria em 1911. À beira de ataque de nervos, Mahler passou por sessões de terapia com Sigmund Freud. Só então sentiu-se saudável e recomposto para retomar o trabalho como compositor. Uma luz de lanterna de celular surge na poltrona da frente, incomodando os olhos acostumados à penumbra. Será que alguém procura essas informações no programa? Página dois, os dois primeiros parágrafos. Leia rápido, por favor.
 
II.
 
Im Tempo eines gemächlichen Ländlers. Etwas täppisch und sehr derb. No segundo movimento da Nona encontramos Mahler em contato com a serenidade. Longe da vida agitada da cidade, em comunhão com os Alpes austríacos de sua adoração, que lhe forneceram uma centena de linhas inspiradas, Mahler toma a partitura para dançar. O uso do Ländler, uma dança folclórica austríaca, não é novidade na escrita mahleriana. Ele surge nas sinfonias de Mahler como um alívio cômico, uma descarga de alegria em um espírito cansado e taciturno. Querida, isso não está escrito no programa. Desligue a lanterna, que já está incomodando.
 
Começa com os violinos apresentando o tema. Cinco notas insinuantes. É o convite à dança. A clarineta responde, seguido do fagote e das trompas. O convite foi aceito. Chega a vez das violas se incorporarem à melodia, apresentando o segundo tema. Forma-se a roda. Cordas e sopros se alternam na apresentação dos dois temas e a ciranda de sons é constante. De novo um click mais à frente, e o flash a iluminar o salão. Mais um momento congelado para o Instagram, e a música segue. A ciranda dá lugar a uma valsa. As cordas apresentam o tema. Não é uma valsa de salão, onde imaginaríamos a princesa Sissi debruando vestidos de seda à impressionar a corte. É pesada e rústica, como é a vida campesina, mas não vazia de alegria e jovialidade, sentimentos nos quais Mahler quer afogar-se por inteiro. Cordas, sopros e percussão se unem para uma vigorosa execução. Ao meu lado, dedos frenéticos trocam mensagens pelo Whatsapp, como que acompanhando os compassos da música. Mais à frente, novamente o click e o flash. Se há uma convulsão de sons e melodias no palco, há na plateia os seus concorrentes.
 
A dança vai diminuindo sua intensidade. Aos poucos, os instrumentos vão deixando a roda, até restar os sopros expondo o tema inicial do movimento, aquelas cinco notas insinuantes e convidativas. Mahler não quer deixar o momento acabar. O fim da dança é o fim da alegria, da jovialidade, tudo o que falta ao compositor no seu momento de miséria. Mas se nada é feito para durar, que seja proveitoso até o último minuto. Fagote e corne inglês alternam-se na exposição do tema, o som diminuindo gradativamente até que o movimento se encerra com a flauta. Silêncio no palco. Na platéia, cadeiras rangem e gargantas pigarreiam. Parece que são todos acometidos de uma tuberculose crônica. Mas as gargantas aquietam, e os assentos parecem mais confortáveis. Tudo pronto para o terceiro movimento.

III.

Rondo-Burleske: Allegro assai. Sehr trotzig. Realmente, nada é feito para durar. A alegria jovial daquela dança campesina do segundo movimento, transforma-se numa caricatura burlesca de si mesma no terceiro movimento. O som de uma orquestra em fúria se levanta no Theatro. Trompetes anunciam o tema, seguido por violinos e violas. As cordas atacam a melodia com intensidade, numa sucessão de harmonias dissonantes. Surge uma nova dança, feérica, irônica. Click. Cada arpejo vale um flash.
 
Mahler passa em revista suas realizações, conquistas e triunfos. Talvez tenha lembrado de sua conversão pragmática ao catolicismo, para conseguir o cargo de diretor da Ópera de Viena. Seu comentário sobre o assunto, confidenciado a um amigo da época, mostra bem o espírito de Mahler: “apenas troquei de capa”. Até poucos anos após sua morte, o mundo musical o reconhecia como um regente superior à média, tendo suas interpretações de Mozart e Beethoven grande destaque. O valor que dava aos compositores contemporâneos também era digno de nota. A ópera italiana renovava-se no mundo germânico com produções capitaneadas por Mahler e Viena. Como compositor, no entanto, o reconhecimento não encontrou a mesma acolhida. Suas sinfonias são longas, contendo uma infinidade tal de melodias que deixa o ouvinte incauto zonzo de tanto som.
 
À tudo isso, Mahler responde como uma criança travessa, dando a língua e rindo por último. Mesmo sujeito à critica e ao escárnio dos homens de seu tempo, Mahler compôs a música que estava presa dentro de si, sem concessões. A grandiosidade de suas orquestrações, a quebra constante de paradigma da forma sinfônica, seu fascínio pelos temas mais profundos do inconsciente – o amor, a morte, e a redenção espiritual. Mahler trouxe para si a responsabilidade de compôr uma música que contemplasse a vastidão de um universo que não se vê com olhos, e divertiu-se com a tarefa. Click.
 
IV.
 
Adagio. Sehr langsam und noch zurückhaltend. Mahler tinha mais fôlego de vida no espírito, do que cabia em seu peito. O coração não duraria mais tanto tempo e o esforço de emendar na composição de uma décima sinfonia provar-se-ia infrutífero. Sua Nona chega ao último movimento e ainda há tanta música para ser escrita, que parece não caber numa folha de pauta. A vida não é justa, mas é a vida que temos para viver da melhor maneira possível. É o que diz o movimento lento que encerra a obra.
 
O movimento começa com uma melodia arrastada pelos violinos. Soam como o suspiro que sucede um longo choro. Resignação. Segue-se um longo tema, com todas as cordas em harmonia. Cada nota soa como uma suflada de ar pelo corpo. Ainda há sangue nas veias, ainda há um coração batendo, ainda há vida. Mas está acabando, infelizmente. Mahler vai se despedindo do seu ofício, que era também sua vida. Click, click. Mais um selfie para o Facebook. O adeus é dolorido. Juntam-se às cordas os fagotes, as flautas, os trombones, os trompetes. Toda a orquestra, cada instrumento ao seu modo, com seu som único, vai também se despedindo. A relação entre o compositor e a sua música é um caso de amor inequívoco.
 
Pianissíssimo. Mahler vai se agarrando ao último fogo de vida de sua obra, como se disso dependesse anos à mais para compor as melodias que ainda povoam seu gênio. Os últimos acordes de sua Nona são as últimas linhas de um poderoso testamento musical. Mas o que virá depois, talvez pergunte Mahler não para si, mas para suas obras, sua música. Será o silêncio a morte da música, ou seu momento fundante? Na dúvida, melhor que a música não pare. Ewig, ewig, ewig... Click.
 
Ao passo em que a música se encerra, como um último suspiro de existência, uma angústia toma conta da platéia, ávida pelo aplauso automático. Um grito de bravo tira a platéia de sua miséria. Todos aplaudem com entusiasmo e pedem bis. Querem mais um momento congelado para o Facebook, um último registro para o Twitter, uma última foto com filtro para o Instagram. Enquanto uns oferecem ruídos mundanos em troca de melodias titânicas, outros aprisionam o momento numa câmera de iPhone, para a lembrança não da memória, mas da rede social. Pobre Steve Jobs, que inventou um dispositivo capaz de aprisionar imagens, mas esqueceu de inventar um dispositivo que aprisionasse também o som. É uma triste e irônica lembrança essa, a de uma orquestra eternizada pelo silêncio.