terça-feira, março 19, 2013

Construindo um papa humilde

Fica evidente o esforço da mídia nacional e internacional em louvar as mínimas atitudes do novo papa, ressaltando seu espírito humilde e simples. Jorge Mario Bergoglio, ex-arcebispo de Buenos Aires, e oficialmente entronado hoje como papa Francisco, assume a igreja romana cercada pelos escândalos sexuais entre seus sacerdotes, pelas denúncias de corrupção envolvendo a Cúria romana, e pelo descrédito que envolve os fiéis europeus e na América do Norte. Um papa forte, e ao mesmo tempo compassivo, segundo analistas, pode ajudar a combater a grande crise que paira sobre a Igreja Católica. O que parece é que os líderes da Igreja Católica embarcaram numa jornada em busca de algo há muito perdido, em toda a cristandade: os ensinamentos do próprio Cristo.
 
Pairam sobre o papa Francisco a desconfiança sobre suas reais ligações com a ditadura argentina. O porta-voz do Vaticano prontamente descaracterizou as denúncias, acusando o jornalista argentino Horácio Verbitsky de “esquerdismo”. A imprensa de modo geral pouco se ocupou do assunto. Talvez porque os fatos apresentados por Verbitsky são incontestáveis. Além de vários documentos, o jornalista reforça o relato do jesuíta Francisco Jalics, religioso perseguido durante a ditadura militar argentina e hoje radicado na Alemanha. Em seu livro Exercício de Meditação, de 1994, Jalics narra o seguinte:
 
“Muita gente que sustentava convicções políticas de extrema-direita via com maus olhos nossa presença nas vilas pobres. Interpretavam nossa presença ali como um apoio à guerrilha e se propuseram a nos denunciar como terroristas. Nós sabíamos de que lado soprava o vento e quem era o responsável pelas calúnias. De modo que fui falar com a pessoa em questão e expliquei que estava jogando com as nossas vidas. O homem me prometeu que diria aos militares que não éramos terroristas. Por declarações posteriores de um oficial e trinta documentos aos quais tivemos acesso mais tarde pudemos comprovar, sem lugar para dúvidas, que esse homem não só não havia cumprido sua promessa, mas, ao contrário, havia apresentado uma falsa denúncia aos militares”.
 
Outro religioso jesuíta, Orlando Yorio, em carta escrita ao assistente geral da Companhia de Jesus em 1975, foi mais direto. Afirmou que Bergoglio era o autor das denúncias.
 
As contundentes provas contra o papa Francisco devem ser analisadas dentro do contexto amplo da submissão do alto clero sul-americano aos governos militares de seus respectivos países. Em ata de reunião realizada em 15 de setembro de 1976, entre a junta militar e a Conferência Episcopal Argentina, fica explícito o apoio incondicional do clero argentino ao chamado Processo de Reorganização Nacional daquele país. Nesse documento, amplamente divulgado por Verbitsky, fica esclarecido que a igreja na Argentina não pretende “encabeçar uma posição de crítica à ação do governo, atitude que não nos corresponde”. Dizem ainda os bispos que o fracasso do governo militar levaria o país “com muita possibilidade ao marxismo, e por isso acompanhamos o atual processo de reorganização do país, empreendido e encabeçado pelas Forças Armadas, com compreensão, e a seu tempo com adesão e aceitação”.
 
 
Vale lembrar que não diferente do clero argentino, o clero brasileiro também empreendeu perseguição aos elementos progressistas dentro da igreja. O Grande Don Hélder Câmara teve sua vida eclesiástica resumida ao ostracismo, foi impedido de viajar ao exterior para conferências, foi proibido de lecionar em seminários e viu as comunidades de base de sua diocese enfraquecerem. Tão execrável quanto relegar um clérigo ao obscurantismo, é o silêncio tácito à tortura de padres, como Leonardo Boff, Frei Betto e Frei Tito. Boff e Betto sobreviveram ao terrorismo de estado e mantém seu ativismo. Frei Tito, chagado pela intolerância do seu meio, suicidou-se no exílio.
 
 
E mesmo com o peso dessas acusações, de uma postura de total desprezo pela vida daqueles clérigos perseguidos, toda a história pregressa do papa Francisco, aos olhos do mundo, vão virando não mais que uma polêmica nota de rodapé na biografia do sumo-pontífice. Parece que a grandeza do cargo o escusa de qualquer falta no passado. Afinal, é primeiro papa sul-americano, um continente devastado pela pobreza. É o papa que não adere aos protocolos pontificiais; é o papa que usa um crucifixo de aço; é o papa cujo anel é somente folheado a ouro; é o papa que anda de ônibus; é o papa que gosta de tango e torce para um time de futebol. A construção da imagem do papa Francisco é tão canhestra, se utiliza de argumentos tão forçados, que fica impossível não perceber o quanto a mídia tradicional se compromete na defesa do indefensável. Utilizam-se inclusive da imagem de Francisco Jalics, dizendo que o clérigo atualmente está em paz com o novo papa. O que não passa pela análise dos jornalistas é que se Jalics perdoou mesmo o papa Francisco, tal atitude só enaltece o caráter de Jalics em detrimento de qualquer mérito do papa Francisco.
 
 
Fica portanto muito evidente o que se pode esperar desse novo pontificado. A Igreja Católica e o seu pontificado buscam fortalecer-se como poder político, promovendo os interesses da classe que os sustenta. O diálogo interreligioso, efêmero durante todo o pontificado de Bento XVI, se não continuar estagnado como está, corre o iminente risco de corroer. Mesmo provada a importância da mulher em nossa sociedade, e contrariando a tendência de alguns grupos cristãos, o sacerdócio feminino será sempre um absurdo. O celibato – uma castração consentida da sexualidade, e que pode ser a resposta para os escândalos de pedofilia que assolam o clero católico – não terá a abordagem merecida. As pesquisas com células-tronco,  uma esperança concreta para quem sofre de doenças crônicas do cérebro, do coração, ou para os que estão paralisados, será sempre uma afronta à vida. A seção de direitos civis a homossexuais será sempre vista como uma outorga de privilégios especiais; e luta pela erradicação da pobreza extrema será sempre vista como a busca impossível do paraíso na terra. Mesmo promovendo um discurso de bondade e compaixão, a Igreja Católica e o papado caminham a passos largos na contramão do seu tempo, aprofundando a irrelevância com que certos setores da sociedade os enxergam.
 

Um discurso de ódio impregna toda a cristandade, desde católicos a evangélicos. O silêncio do clero cristão a esse ódio significa apoio incondicional ao ódio contra a luta das minorias e a plena democracia. Esquecem-se da prédica de Jesus, que disse que os humildes herdarão o Reino de Deus, que os que promovem a paz serão chamados Filhos de Deus, e que os que tem fome e sede de justiça serão satisfeitos. Envergonham, portanto, o seu Deus e o seu Cristo.

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Nota do autor: tive que excluir o penúltimo parágrafo da verão original do texto, pois ele citava um site de humor da internet. Aos que leram a primeira versão, minhas desculpas. Alguns pensam que emular a linguagem de certos grupos, com intuito satírico, é uma forma de criticar as reações extremadas. Eu não vejo utilidade nesse tipo de humor, porque a maioria dos que se prestam a ele não passam o mínimo de ironia no que publicam. Simplesmente repetem a retórica, sem nenhum filtro humorístico, porque acham que a retórica em si é uma piada pronta. Se soubessem quantos pela rede realmente acreditam que a Igreja Católica é a grande combatente do comunismo, ou que os militares ditadores da América Latina prestaram um grande serviço aos seus países, talvez repensassem sua estratégia de humor.

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