Discordo dos que não consideram nossa onda de protestos algo que se
possa chamar de Primavera Brasileira. A primavera é a estação do despertar, é a
estação onde se lançam as sementes para a colheita futura. A Primavera de 1848
durou apenas um ano, mas moldou o espírito político social da Europa até o
século XX. A Primavera Árabe conseguiu muito mais do que podia, em menos de
cinco anos. E agora assombra governos que até pouco tempo restavam seguros de
suas posições hegemônicas (vide a Turquia). O Brasil simplesmente acomapanha a
vaga mundial e deixa de ser terra infértil.
Ao mesmo tempo, compartilho a preocupação de alguns quanto ao caráter político de nossa
Primavera Brasileira – deixando um grifo importante e enfático no “caráter
político”. Diante da ainda efêmera vitória alcançada ontem, em várias capitais
do país, desenham-se esquemas obscuros, de latente caráter sabotador. E contra
eles, os manifestantes não possuem preparo para combater.
Destaca-se a manipulação midiática em torno das manifestações. Em
editorial feérico há duas semanas atrás, o jornal A Folha de São Paulo defendia
punição severa aos manifestantes da Avenida Paulista. A Rede Globo, ao noticiar
os eventos, só destacava os episódios de depredação. Os comentaristas de
segurança de todos os telejornais, eram só elogios à ação truculenta das polícias
militares. Em todas as emissoras, era o mesmo mote: destaque para as cenas de
depredação e descaracterização da frente de luta. Mas a polícia é bem mandada e
cumpre ordens à risca. A violência policial atinge os meios de comunicação e
uma repórter da Folha é ferida gravemente no olho direito. E então, só então,
surgem na grande mídia os relatos da violência gratuita. Em vídeo postado na
internet no domingo, policiais militares do Rio jogam gás lacrimogêncio em
manifestantes no Campo de São Cristóvão. Mulheres e crianças que passeavam no
parque também são atingidos. A opinião pública pende para o outro lado. A
grande mídia prepara a guinada.
E o que se vê hoje? A Folha de São Paulo está em cima de toda ação
policial, que agora é caracterizada como violenta. Rodrigo Pimentel destaca o
despreparo da polícia em ações de contenção de multidões. Arnaldo Jabor pede
desculpas públicas por engrossar o coro pela repressão. E o que nasceu da rua, da
espontaneidade popular, passa a ganhar ares novelescos. Os manifestantes do
bem, que vestem branco e distribuem flores. Os baderneiros do mal, que
incendeiam carros e destróem o patrimônio público. Os que defendem a bela
democracia, de espírito jovem e ordeiro. Os desordeiros que desestabilizam o
movimento e não representam a maioria. Impoem agora quem está apto para
protestar, como protestar, e pelo quê protestar. Todos fazem parte da mesma
luta. Todos estão na rua pela mesma idéia, todos gritam pelos mesmos direitos. Mas
para a grande mídia, só os que vestem luvas de seda tem direitos. Azar o deles.
Quem não rasgar as luvas de seda, não está disposto a se sujar. Não está
preparado para a rebelião social.
É preocupante a idéia de “despolitização” dos protestos, que inunda a
mente dos manifestantes. Faixas com os dizeres “nenhum partido me representa” são
erguidas com entusiasmo. A fala do governador Sérgio Cabral Filho, e a
manifestação de alguns pela internet, faziam coro a esse propósito e criticavam
o “caráter político” de algumas manifestações, que destoavam do “caráter
popular” que os protestos deveriam ter. Talvez por isso, alguns militantes de
esquerda, que empunhavam as bandeiras de seus partidos e de suas organizações,
foram hostilizados pela maioria dos presentes aos atos. Espalhava-se pela rede,
entre os militantes de esquerda, que nenhuma mafestação a favor do ato deveria
ter “caráter político”. Ontem, em São Paulo, um militante do PCR (Partido
Comunista Revolucionário) foi expulso do ato aos aplausos da multidão. Mais à
noite, um grupo do PSTU foi vaiado e hostilizado.
Porém, examine-se nas imagens da TV quais bandeiras estavam presentes
nos atos em todo o país. Havia entre elas alguma representante da conhecida
oposição ao governo federal? E se o governo afirma que as manifestações são
legítimas da ordem democrática, onde estava para conter o abuso policial nos
últimos enfrentamentos? Desde ontem, deputados, senadores, e políticos de
diversas correntes louvavam o espírito aguerrido dos manifestantes. O programa
partidário do PMN, por quase dez minutos, ressaltava que só a organização
popular é capaz de transformar o país. Onde estavam todos eles, quanto as
manifestações não ganhavam o vulto midiático que agora possuem?
A isso não se denomina “despolitização”, denomina-se “alienação
político-partidária”. A idéia corrente de que os partidos políticos abusam da
boa vontade do povo, fazendo prevalecer pretensas ambições de poder. Os que se
manifestam contra os partidos que apoiam os protestos cantam, na verdade, uma
grande ode à nazificação do movimento. Enquanto muitos foram para a rua
protestar pela primeira vez, vários já estiveram em protestos antes. Enquanto
muitos se deslumbravam com os cem mil que inundaram a Rio Branco, vários sabiam
que aquela marcha ainda significava pouco. Construir uma unidade política,
unificar uma vasta agenda de demandas, no meio de um grupo tão heterogêneo, é
um desafio maior e mais árduo do que mobilizar pessoas pelo Facebook. A rua não
é lugar para sectarismo. Ela já esteve ocupada por essas bandeiras antes, e continuará
ocupada por elas quando a maioria cansar de brincar de manifestante. E é isso
que diferencia quem possui ambições de poder, e quem é comprometido com uma
luta verdadeiramente democrática.
Para quem acordou agora para o clamor das ruas, bem-vindo à luta! Mas
saiba que já tinha gente nela antes. Conheça-os antes de hostiliza-los. Eles
podem te ajudar a construir algo mais sólido para o seu país do que a sua
simples indignação.