Fica evidente o esforço da mídia nacional e
internacional em louvar as mínimas atitudes do novo papa, ressaltando seu
espírito humilde e simples. Jorge Mario Bergoglio, ex-arcebispo de Buenos
Aires, e oficialmente entronado hoje como papa Francisco, assume a igreja
romana cercada pelos escândalos sexuais entre seus sacerdotes, pelas denúncias
de corrupção envolvendo a Cúria romana, e pelo descrédito que envolve os fiéis
europeus e na América do Norte. Um papa forte, e ao mesmo tempo compassivo, segundo
analistas, pode ajudar a combater a grande crise que paira sobre a Igreja
Católica. O que parece é que os líderes da Igreja Católica embarcaram numa
jornada em busca de algo há muito perdido, em toda a cristandade: os
ensinamentos do próprio Cristo.
Pairam sobre o papa Francisco a desconfiança
sobre suas reais ligações com a ditadura argentina. O porta-voz do Vaticano
prontamente descaracterizou as denúncias, acusando o jornalista argentino
Horácio Verbitsky de “esquerdismo”. A imprensa de modo geral pouco se ocupou do
assunto. Talvez porque os fatos apresentados por Verbitsky são incontestáveis.
Além de vários documentos, o jornalista reforça o relato do jesuíta Francisco
Jalics, religioso perseguido durante a ditadura militar argentina e hoje
radicado na Alemanha. Em seu livro Exercício de Meditação, de 1994, Jalics
narra o seguinte:
“Muita gente que sustentava convicções
políticas de extrema-direita via com maus olhos nossa presença nas vilas
pobres. Interpretavam nossa presença ali como um apoio à guerrilha e se
propuseram a nos denunciar como terroristas. Nós sabíamos de que lado soprava o
vento e quem era o responsável pelas calúnias. De modo que fui falar com a
pessoa em questão e expliquei que estava jogando com as nossas vidas. O homem
me prometeu que diria aos militares que não éramos terroristas. Por declarações
posteriores de um oficial e trinta documentos aos quais tivemos acesso mais
tarde pudemos comprovar, sem lugar para dúvidas, que esse homem não só não
havia cumprido sua promessa, mas, ao contrário, havia apresentado uma falsa
denúncia aos militares”.
Outro religioso jesuíta, Orlando Yorio, em
carta escrita ao assistente geral da Companhia de Jesus em 1975, foi mais direto.
Afirmou que Bergoglio era o autor das denúncias.
As contundentes provas contra o papa Francisco
devem ser analisadas dentro do contexto amplo da submissão do alto clero sul-americano
aos governos militares de seus respectivos países. Em ata de reunião realizada
em 15 de setembro de 1976, entre a junta militar e a Conferência Episcopal
Argentina, fica explícito o apoio incondicional do clero argentino ao chamado
Processo de Reorganização Nacional daquele país. Nesse documento, amplamente
divulgado por Verbitsky, fica esclarecido que a igreja na Argentina não
pretende “encabeçar uma posição de crítica à ação do governo, atitude que não
nos corresponde”. Dizem ainda os bispos que o fracasso do governo militar
levaria o país “com muita possibilidade ao marxismo, e por isso acompanhamos o
atual processo de reorganização do país, empreendido e encabeçado pelas Forças
Armadas, com compreensão, e a seu tempo com adesão e aceitação”.
Vale lembrar que não diferente do clero
argentino, o clero brasileiro também empreendeu perseguição aos elementos progressistas
dentro da igreja. O Grande Don Hélder Câmara teve sua vida eclesiástica
resumida ao ostracismo, foi impedido de viajar ao exterior para conferências,
foi proibido de lecionar em seminários e viu as comunidades de base de sua
diocese enfraquecerem. Tão execrável quanto relegar um clérigo ao
obscurantismo, é o silêncio tácito à tortura de padres, como Leonardo Boff,
Frei Betto e Frei Tito. Boff e Betto sobreviveram ao terrorismo de estado e
mantém seu ativismo. Frei Tito, chagado pela intolerância do seu meio,
suicidou-se no exílio.
E mesmo com o peso dessas acusações, de uma
postura de total desprezo pela vida daqueles clérigos perseguidos, toda a
história pregressa do papa Francisco, aos olhos do mundo, vão virando não mais
que uma polêmica nota de rodapé na biografia do sumo-pontífice. Parece que a
grandeza do cargo o escusa de qualquer falta no passado. Afinal, é primeiro
papa sul-americano, um continente devastado pela pobreza. É o papa que não
adere aos protocolos pontificiais; é o papa que usa um crucifixo de aço; é o
papa cujo anel é somente folheado a ouro; é o papa que anda de ônibus; é o papa
que gosta de tango e torce para um time de futebol. A construção da imagem do
papa Francisco é tão canhestra, se utiliza de argumentos tão forçados, que fica
impossível não perceber o quanto a mídia tradicional se compromete na defesa do
indefensável. Utilizam-se inclusive da imagem de Francisco Jalics, dizendo que
o clérigo atualmente está em paz com o novo papa. O que não passa pela análise
dos jornalistas é que se Jalics perdoou mesmo o papa Francisco, tal atitude só
enaltece o caráter de Jalics em detrimento de qualquer mérito do papa
Francisco.
Fica portanto muito evidente o que se pode
esperar desse novo pontificado. A Igreja Católica e o seu pontificado buscam fortalecer-se
como poder político, promovendo os interesses da classe que os sustenta. O diálogo
interreligioso, efêmero durante todo o pontificado de Bento XVI, se não
continuar estagnado como está, corre o iminente risco de corroer. Mesmo provada
a importância da mulher em nossa sociedade, e contrariando a tendência de
alguns grupos cristãos, o sacerdócio feminino será sempre um absurdo. O
celibato – uma castração consentida da sexualidade, e que pode ser a resposta
para os escândalos de pedofilia que assolam o clero católico – não terá a
abordagem merecida. As pesquisas com células-tronco, uma esperança concreta para quem sofre de doenças
crônicas do cérebro, do coração, ou para os que estão paralisados, será sempre
uma afronta à vida. A seção de direitos civis a homossexuais será sempre vista
como uma outorga de privilégios especiais; e luta pela erradicação da pobreza
extrema será sempre vista como a busca impossível do paraíso na terra. Mesmo
promovendo um discurso de bondade e compaixão, a Igreja Católica e o papado
caminham a passos largos na contramão do seu tempo, aprofundando a irrelevância
com que certos setores da sociedade os enxergam.
Um discurso de ódio impregna toda a cristandade, desde católicos a evangélicos. O silêncio do clero cristão a esse ódio significa apoio incondicional ao ódio contra a luta das minorias e a plena democracia. Esquecem-se da prédica de Jesus, que disse que os humildes herdarão o Reino de Deus, que os que promovem a paz serão chamados Filhos de Deus, e que os que tem fome e sede de justiça serão satisfeitos. Envergonham, portanto, o seu Deus e o seu Cristo.
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Nota do autor: tive que excluir o penúltimo parágrafo da verão original do texto, pois ele citava um site de humor da internet. Aos que leram a primeira versão, minhas desculpas. Alguns pensam que emular a linguagem de certos grupos, com intuito satírico, é uma forma de criticar as reações extremadas. Eu não vejo utilidade nesse tipo de humor, porque a maioria dos que se prestam a ele não passam o mínimo de ironia no que publicam. Simplesmente repetem a retórica, sem nenhum filtro humorístico, porque acham que a retórica em si é uma piada pronta. Se soubessem quantos pela rede realmente acreditam que a Igreja Católica é a grande combatente do comunismo, ou que os militares ditadores da América Latina prestaram um grande serviço aos seus países, talvez repensassem sua estratégia de humor.