Edward Wong
Colaboração de Wisan A. Habib, de Bagdá e Daniel J. Wakin, de Nova York
A tarde começou com a Abertura 1812, de Tchaikovsky, a orquestra pulsando os acordes marciais pelo auditório, os trompetes, trombones e cordas juntos em um bombástico clímax. Mas o ambiente acalmou-se com uma peça chamada Requiem, escrita esse ano pelo maestro da orquestra. Um solo de violoncelo, lento, lamentoso e contundente, composto como uma elegia para seu país. As centenas de iraquianos e diplomatas ocidentais na platéia pareciam hipnotizados, bem como os guardas portando fuzis Kalashnikov.
“É como uma pessoa que está morrendo”, disse o regente Muhammad Amin Ezzat após o concerto, em clube a oeste de Bagdá. “Por algum tempo ele estava sorrindo. O coração ainda está batendo, mas respirar é difícil, falar é difícil, e ele está próximo da morte”. A mudança repentina entre o “triunfalismo” de Tchaikovsky para a peça de Ezzat reflete o atual estado do Iraque e de um de seus duradouros símbolos de unidade nacional: a Orquestra Sinfônica Nacional Iraquiana.
Por quase três anos de conflito, a orquestra batalhou levantando o moral do país e prestando socorro através da arte. Porém membros da orquestra descobrem que enquanto a arte pode, às vezes, trazer um alento à dura realidade, ela não se sustem como baluarte contra as mazelas do conflito.
Neste verão, quatro membros da orquestra fugiram para a Síria e Dubai, desfalcando a orquestra em dois violoncelistas, um oboísta e um violista. A orquestra conta com 59 musicistas, freqüentemente forçados a ensaiar sem eletricidade, devido a constantes blecautes. Os ensaios acontecem três vezes por semana, no antigo real salão de concertos, localizado no destruído centro histórico de Bagdá, e com guardas armados cercando o prédio. Os musicistas estão ficando sem palhetas e cordas, e poucas lojas de instrumentos permanecem abertas no Iraque, em parte porque as milícias islâmicas bombardearam várias. Eles também preocupam-se em não ofender os milicianos e os vizinhos.
“As circunstâncias afetam o nosso dia-a-dia”, disse Karim Wasfi, o diretor da orquestra e violoncelista. “Mas eu gosto de pensar que apesar das dificuldades e instabilidades, nós existimos, nós tocamos, nós damos esperança”.
A orquestra é uma das mais antigas da região, disse Wasfi. Sua fundação remonta a um quarteto de cordas formado em 1939. O primeiro agrupamento, conhecido como Filarmônica de Bagdá, tornou-se orquestra no início dos anos 50. Seu repertório consiste de compositores europeus, mas também exibe peças de seus membros, incluindo aqueles enraizados na tradição musical árabe.
Desde a invasão americana em 2003, a orquestra se apresentou nos Estados Unidos, Jordânia e Dubai, e se apresenta freqüentemente na região curda do Iraque. Fez sete concertos na última temporada, alguns patrocinados por uma companhia de telefonia móvel do Kuwait. A estréia dessa temporada está marcada para 1 de outubro, em um teatro no subúrbio de Bagdá. O governo paga aos musicistas de 140 a 620 dólares por mês.
Mesmo agora, em que o país se divide em disputas sectárias, a orquestra permanece como um espelho da etnicidade e religiosidade da sociedade iraquiana. Tocando lado a lado estão árabes sunitas e xiitas, curdos, cristãos, secularistas e até um membro da religião Mandeana, uma fé gnóstica que considera Adão e João Batista profetas.
Mas as esperanças nutridas após a queda de Saddam Hussein desapareceram. Naquele ano de 2003, a orquestra tocou no Kennedy Center, em Washington, onde na platéia estavam o Presidente Bush e o Secretário de Estado Colin Powell. Alguns membros foram convidados a visitar a Casa Branca. Agora Ali Khasaf, clarinetista, têm que ensaiar em um cômodo fechado em sua casa, correndo o risco de ofender os milicianos conservadores.
Khasaf mora em Sadr City, a cidadela da milícia comanda pelo clérigo xiita Muktada Al-Sadr. Algumas Sharías controladas por seguidores de Sadr consideram música erudita anti-islâmica, como fez o Taliban no Afeganistão. “Se os vizinhos ouvirem o som, eles podem não gostar”, disse Khasaf, membro da orquestra à 25 anos. “O público aqui não é como no resto do mundo”.
Khasaf não é o único membro de sua família na orquestra. Seu irmão mais velho toca , um mais novo é oboísta, e um sobrinho é trompetista. Khasaf começou a tocar clarinete em 1973, quando ingressou na banda do exército iraquiano. Seguiu os passos do irmão Mehdi, que entrou na banda dez anos antes. “Eu achei muito bonito, então decidi entrar”, disse. “Aprendemos com musicistas russos e alemães, enquanto estávamos no exército”.
Khasaf e seus famíliares têm que esconder seus instrumentos, mas ao menos eles podem praticar em casa. Não é o caso de Izzat Ghafouri Baban, trompetista curdo que mora, segundo o próprio, “em um lugar sujo”: o bairro de Shaab, também controlado pela milícia de Al-Sadr. “Eu não posso praticar em casa porque estou cercado de husseinianas”, disse Baban, referindo-se às mesquitas xiitas que honram o neto do profeta Maomé, considerado mártir. “Imagine se alguém sabe que há um músico em minha casa. Eles diriam que eu estou contra a religião”. Ele só consegue ensaiar chegando duas horas antes que seus colegas. “A única coisa que nos deixa contentes é quando nos revemos. É o melhor momento de nossas vidas”.
Ele disse que sempre costumava levar uma garrafa de uísque para casa, depois de dividi-la com os músicos após os ensaios. Uma vez ele voltava para casa quando viu uma patrulha da milícia xiita. Ele sabia que teria a garganta cortada se encontrassem a garrafa em seu carro, mas foi salvo no último minuto, por um blindado americano que patrulhava a área.
Essa orquestra representa o real mapa do Iraque”, disse Ali Nasser, trombonista. “Esse homem é curdo, um outro alí é cristão. Essa é realmente uma sinfônica nacional. Nossos laços são inquebráveis”. Dizia isso abraçado a Izzat Baban, que acendia um cigarro.
Nasser, talvez mais do que todos, provou sua dedicação à música. Padeiro no sul de Nassíria, ele ou dirige ou pega um táxi para os ensaios. É uma viagem que dura de quatro a seis horas, ida e volta, e o preço da gasolina consome mais da metade de seus ganhos. O pior é que a estrada corre pelo “Triângulo da Morte”, uma área infestada de insurgentes, milicianos e criminosos. Atiradores, certa vez, alvejaram passageiros de um carro poucos metros à sua frente. “Minha mulher diz: ‘Não vá, por favor. A vida é muito ruim em Bagdá. Têm muita morte em Bagdá’. Ela tenta me impedir de vir, mas em tenho que vir. Não podemos sobreviver sem música. É como oxigênio”.
Sobrevivência ainda é a inspiração artística, ao menos por enquanto. Isso ficou evidente nas notas finais do Réquiem, a elegia para o Iraque, interpretada pelo violoncelo de Karim Wasfi. A peça é na maioria estruturada em notas menores, exaltando um clima de desolação. Mas as últimas melodias eram de vigorosas notas maiores. A mensagem era clara: Ainda estamos vivos.
WONG, Edward. And the orchestra plays on, echoing the Iraq’s struggles. The New York Times on the Web, sessão Music. Extraído de http://www.nytimes.com, acessado em 28 de setembro de 2006.
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