quarta-feira, abril 12, 2006

Minha Páscoa Musical - Parte II


JOHANN SEBASTIAN BACH
A Paixão segundo S. Mateus
Peter Pears, Hermann Prey, Ely Ameling, Marga Höffgen, Fritz Wunderlich, Tom Krause.
Stuttgarter Hymnus-Chorknaben
Orquestra de Câmara de Stuttgart
Karl Münchinger, reg.

Sempre me perguntei porquê toda a encenação do martírio de Cristo é chamada de “Paixão”. O termo hoje possui uma conotação carnal, e seu uso nos redutos evangélicos me incomoda ao extremo. Mas descobri recentemente (durante pesquisas para este artigo) que a conotação carnal e espiritual da palavra possui uma linha de desenvolvimento lógica. A palavra “paixão” deriva do vocábulo latino passio, e significa literalmente “sofrimento”. A cultura dos diversos povos de origem latina fez com que a semântica da palavra se alargasse, absorvendo mais significados. E atribui-se a Shakespeare a autoria da primeira conotação sexual da palavra: “And that my sword upon thee shall approve, and plead my passions for Lavinia’s love” (Tito Andronico. Ato II, cena 1).

A Paixão, na história da música, é uma forma específica de oratório. O texto base, claro, é a narração da crucificação de Cristo contida nos evangelhos sinóticos, e a peça era comumente encenada na sexta-feira santa. Costuma-se dizer que o oratório é uma espécie de “ópera religiosa”. Handel, grande compositor de oratórios, era um operista de mão cheia, o que não é o caso de Bach. No texto anterior eu disse que o compositor de ópera, por lidar com “sentimentos à flor da pele”, tem facilidade de pôr em música a religiosidade. Mas isso não impede o surgimento de um compositor que possua pleno entendimento do caráter pio do texto religioso. Um artista que faz da música religiosa a sua própria profissão de fé. Só dois compositores, na minha opinião, alcançaram essa excelência: Bach e Bruckner (desse último falaremos em breve).

Creio que a associação entre o oratório e a ópera seja melhor explicada dentro da idéia do “drama musical” de Richard Wagner, independente da centena de anos que separam os dois compositores. Basicamente, Wagner imaginou suas óperas tendo como base o uso dos “motivos”, temas instrumentais que ocorreriam na ação da música para caracterizar um personagem, para expressar um sentimento específico, e assim por diante. A idéia não é propriamente nova na história da música, mas Wagner é o grande responsável por teorizar esse conceito e transformá-lo na idéia de drama musical.

De certa forma, creio que Bach antecedeu Wagner na concepção do drama musical, até pela própria estrutura da A Paixão segundo S. Mateus. Bach concebeu três planos temporais para a Paixão. O primeiro, é a narração em si da trama feita pelo Evangelista (Pears). Toda a ação dramática (musicalmente falando) se desenrola à partir dele, que narra a história e dá a entrada para a intervenção das demais personagens. Justamente por ter essa função de narrador, sua linha de canto não possui uma linha melódica muito elaborada, por assim dizer. Para caracterizar o Evangelista, Bach faz uso de um recurso chamado recitativo, que é acompanhado por um instrumento contínuo, geralmente o cravo.

O segundo plano é o círculo das personagens apresentadas pelo Evangelista. Nesse momento as personagens ainda não desenvolveram uma linha de canto expressiva. Todas estão presas no esquema do recitativo, mas todas possuem uma orquestração que as diferencia. Jesus (Prey) é o melhor exemplo disso. Sua linha de canto é suave e flúida, e tem sua correspondência na orquestra com os primeiros violinos. Eles são responsáveis por acompanhar as intervenções de Jesus, em legatto continuo. O efeito que se obtêm é de uma profunda santidade, como se uma presença divina sempre o acompanha-se. Está aqui um exemplo rudimentar do uso de “motivos” como Wagner havia teorizado: um tema musical recorrente na obra, que é associado a uma personagem e sua características principais. Bach faz uso desse recurso com maestria.

O terceiro plano temporal é o mais importante para o drama musical da A Paixão segundo S. Mateus: é o plano do homem comum, representado pelo quarteto de solistas: Ely Ameling, soprano; Marga Höffgen, contralto; Fritz Wunderlich, tenor; Tom Krause, baixo. A função deles é a mais importantes de todas pois eles não contam a história, e sim interagem com a história. Os solistas são responsáveis por expressar o caráter humano das personagens bíblicas, mostrando que o sofrimento de Cristo não pode ficar somente impresso nas páginas da Bíblia, e sim fazer parte do nosso imaginário. Musicalmente, saímos do plano dos recitativos para uma linha de canto mais elaborada, que chamamos de ária. São peças melodicamente mais expressivas e harmonicamente mais complexas que os recitativos, onde o cantor têm toda a liberdade para mostrar sua técnica e sua interpretação.

Com quase quatro horas de duração, A Paixão segundo S. Mateus é um épico da música religiosa e um marco na história da música. Isso não impediu que Bach amargasse mais de 60 anos de ostracimo após sua morte, em 1750. Só em 1829, sob a regência de Felix Mendelssohn, essa mesma A Paixão segundo S. Mateus reabilitou Bach à seu pedestal na história da arte. Justiça feita.

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